Armação de Pêra, conhecida estância de veraneio, pela sua extensa praia, muito apreciada pelo sol, gastronomia e águas tépidas do oceano, é para muitos um local incontornável pelas memórias que adensam a humidade daquela areia com recordações de infâncias, namoros, amores achados e perdidos entre as dunas, amizades, a alegria dos encontros e histórias de vidas inteiras ligadas ao mar e aos seus frutos.
À semelhança de outras povoações do litoral algarvio, Armação de Pêra desenvolveu-se a partir de uma pequena comunidade piscatória, cuja existência está documentada numa primeira referência escrita conhecida que remonta a 1577, na obra Corografia do Reino do Algarve, de Fr. João de São José que no contexto de uma descrição da aldeia de Pêra deixou registada a seguinte observação: «Pêra é um lugar junto de Alcantarilha, não longe do mar. [...]. Faz o mar defronte dela ua fermosa praia da banda do sul, na qual está ua armação de atuns que se chama a armação de Pera.» (S. JOSÉ, imp. 1983, p. 58). A existência de uma armação de pesca do atum perto de Pêra, na zona de costa hoje conhecida como baía de Pêra, para além de justificar a origem do nome da Armação de Pêra, confirma que já em 1577 existiria uma pequena comunidade de pescadores, instalados sazonalmente ou até permanentemente fixada neste local.
Ás ordens de Filipe II, o engenheiro militar italiano Alexandre Massai percorreu a costa do Algarve em 1621 com a finalidade de inspeccionar as infraestruturas defensivas, onde encontrou, nos limites da vila de Albufeira « [...] duas Armassois de Atuns mais álem das ásima dittas q se dizem hua dellas pedra de gúale, a otra pera, e a gente e os barquos dellas no tenpo de necessidade se vão âo emparo desta V.ª e portanto digo serem neçess.ºs os mosquettes E a sobreditta Artelharia, estas dittas Armassois ja forão roubadas E saquiadas por falta de defenção, E com perda da faz.da de Sua mag.de [...]» (GUEDES, 1988, p. 115).
A comunidade piscatória de Armação de Pêra, resistindo ainda e sempre às ameaças de Corsários de origem magrebina que saqueavam as armações de pesca, parece ter sobrevivido e mantido actividade entre 1577 e 1621, considerando-se a possibilidade de se ter inclusivé reforçado e consolidado durante este período. Esta hipótese justifica-se no facto de Alexandre Massai mencionar mais uma armação de pesca na baía de Pêra em 1621 (Pedra da Galé) que Fr. João de São José em 1577 ainda não referenciava. Não é possível confirmar categoricamente se a actividade piscatória e consequente existência de uma população instalada em Armação de Pêra estaria somente restrita à época de pesca do atum (Abril a Agosto), ou se permaneceria no local durante o resto do ano, dedicando-se a outros tipos de pesca. Pela existência de população, pelo interesse económico do local ou por ambos, construiu-se uma pequena fortaleza em 1667, que com a sua guarnição militar reforçou a presença humana em Armação de Pêra.
Aquando do maremoto de 1755, morreram 84 pessoas em Armação de Pêra, tendo ficado de pé apenas uma casa (LOPES, 1989 [2.ª ed.], p. 290). O estudioso das pescas em Portugal, Constantino Botelho de Lacerda Lobo, na Memória sobre o estado das pescarias do Algarve no ano de 1790, escreve sobre Pêra de Santo António (termo que designava Armação de Pêra na época): «Compõe-se esta povoação de um ajuntamento de cabanas de pescadores que vivem perto do mar em uma praia arreenta; confina do nascente com uma alagoa formada por águas vertentes das colinas vizinhas: ao norte com uma aldeia chamada Pêra de Cima[sendo Armação de Pêra também conhecida como Pêra de Baixo] [...].
Contavam-se no ano de 1790 cento e cinquenta pescadores, os quais trabalham na armação do atum o tempo competente desta pescaria, depois na de diversos peixes do mar com os covãos, nos lugares pedregosos da costa: findas as pescarias feitas com estes aparelhos, gastam o resto do ano em arrastar as xávegas para terra. [...].
Em o ano de 1790 havia oito barcos, de que somente faziam uso para a pescaria daquela costa, em cada um dos quais iam oito ou dez pescadores, e os outros costumam ficar em terra para arrastar os aparelhos.
[...] tem tido aumento a pescaria nesta costa; porque no ano de 1790 contavam-se oito barcos, quando em outro tempo somente havia quatro. Também tinha crescido o número dos pescadores, e xávegas.» (LOBO, 1991 [2ª ed.], p. 82, 83). Está assim documentado, no registo deste académico, que Armação de Pêra recuperou rapidamente da devastação que sofreu com o maremoto de 1755, aliás momento que pelo seu profundo significado e impacto na história da nação foi o momento que escolhemos para o nascimento emblemático da personagem Sam, reunindo como referências estéticas para o simbolismo da personagem referências a uma concepção imaculada como a de Jesus Cristo, a chegada na crista de uma onda, como na mitologia romana que assim descreve o nascimento de Vénus e ainda uma vaga semelhança com a cultura da banda desenhada que no caso da chegada do pequeno Clark Kent, o Super-Homem, a envolve num momento drástico, aparatoso e violento facilmente evocativo do terramoto. A todas estas referências juntámos também um grande símbolo da literatura infantil, o Principezinho de Exúpery, por ser uma ode à ternura, simplicidade e esperança contidas na vida de cada Criança. Todas estas referências visam apelar a um reconhecimento e simpatia básicas entre os Clientes da Palhota e a caracterização escolhida para a personagem.
Voltando em rigor à História, João Baptista da Silva Lopes descreve em 1841 Armação de Pêra com estas palavras: « Hoje terá hum terço da povoação da outra aldeia [daquela destruída em 1755], composta de pescadores e gente que se emprega no mar; os quaes tem para as suas pescarias 5 lanchas e 4 artes: a mais dominante he a das sardinhas no tempo da passagem, [...] poucos annos ha, ainda era formada só de cabanas, hoje tem boas casas e algumas ricas. [...] Os moradores, fóra da temporada da sardinha, apanhão com os covãos e anzol algum peixe que vendem em fresco; são hum pouco desmazelados, e não se afastão da costa; dão-se a alguns trabalhos do campo, e as mulheres empregão-se em obras de palma. De verão concorrem aqui muitas pessoas a tomar banhos do mar.» (LOPES, 1989 [2.ª ed.], p. 290, 291).
Este testemunho contém em si dados absolutamente interessantes que registámos para consolidar um caminho e “Pathos” simbólicos para o desenvolvimento do logótipo proposto assim como o enredo geral em que desmultiplicámos as ilustrações que contam a vida da personagem.
Entre 1790 e 1841 Armação de Pêra passa de um agrupamento de cabanas para uma aldeia de casas de alvenaria, indiciando um aumento do poder económico dos seus habitantes e a consequente subida da qualidade de vida.
Ora aqui encontrámos a circunstância ideal para posicionar a personagem Sam, que na sua representação em estado adulto, passou assim a reunir características de uma figuração que o mimetiza a outras personagens muito conhecidas como o Aquaman, o Corto Maltese de Hugo Pratt, Giuseppe Bergman de Milo Manara, Tarzan ou até o Capitão Fantasma. Todas estas personagens são facilmente identificáveis com o “ethos” desta época, ou seja, o sistema de valores, de crenças, e todo o ambiente de fé, aventura, misticismo, heroísmo e coragem que ainda povoava nas evocações das histórias tradicionalmente valorizadas na época. O destino de Sam, seguindo o modelo cavaleiresco, ficou assim traçado para a aventura humanitária, para o imprevisível apelo do mar, feito de inspiração algures entre o sagrado e o profano.
Voltando novamente à História, ao longo deste período de sensivelmente 50 anos, deixou-se de pescar o atum como ocorria em 1577, 1621 e 1790 até que, por fim, em 1841, Armação de Pêra já se prefigurava como um destino balnear «pois concorrem aqui muitas pessoas a tomar banhos do mar.»
É nesta transformação que, utilizando toda a liberdade artística que permite à criatividade relativizar-se um pouco em relação à correcção histórica, que criámos pertinência para a saga de Sam. Uma praia a encher-se de pessoas, adivinhando já as consequências ambientais desta transformação, que nós despudoradamente misturámos com as origens da vila em que a pesca artesanal convivia com incursões piratas do Magreb, ancestrais medos de monstros marinhos e sereias que encantavam marinheiros.
Contudo, seguindo a correcção cronológica 1885/86 A. A. Baldaque da Silva, no levantamento efectuado sobre o estado das pescas em Portugal, contabilizava-se, em Armação de Pêra 27 embarcações e 176 pescadores que consagravam o seu trabalho à captura da espécie de maior rendimento económico à época: a sardinha.
É este o cenário escolhido para a ilustração maior que é a solicitação central do desafio lançado pelo Palhota Café.
Assim, para a lona é esta representação de uma Armação de Pêra mais viva e povoada que é sugerida pela efusão e design das embarcações que servem de cenário à faina de Sam.
Ora, utilizando esta transversalidade histórica da personagem aproveitamos este contacto com a modernidade com a caracterização de Sam com o espírito de personagens como Corto Maltese ou Giuseppe Bergman, personalidades inconformistas, já com um sentido universalista de quem percorre o mundo de uma forma elegante e marginal ligando o que há de comum entre as pessoas e os povos.
Tornou-se assim possível descrever de uma forma muito mais livre e potencialmente interessante, as aventuras deste marinheiro misterioso e irónico, possuidor de uma enorme maturidade, cultura e sentido humanitário, sempre alinhando com os fracos e desprotegidos, mas sem nunca transmitir lições de moral.
Em tom de conclusão, é nossa intenção criar, com esta abordagem ilustrada na proposta visual, um logótipo e uma personagem iconográfica, emblemática, que possa estar alinhada com os valores da ecologia, diversidade, igualdade, solidariedade, respeito pelas tradições, conservação de aspectos basilares na identidade colectiva armacenense e ao mesmo tempo com uma sofisticação e interesse estéticos que coadjuvem a qualidade da oferta do Palhota Café e até a própria elegância do seu projecto arquitectónico e urbanístico.
Bibliografia:
LOBO, Constantino Botelho de Lacerda (1991) - Memória sobre o estado das pescarias da costa do Algarve no ano de 1790 in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa: 1789 - 1815, [2.ª ed.]. Lisboa: Banco de Portugal, tomo V
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LOPES, João Baptista da Silva (1989) - Corografia ou memória económica, estatística e topográfica do reino do Algarve, [2.ª ed.]. Faro: Algarve em Foco Editora, vol. 1
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GUEDES, Lívio da Costa (1988) - Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVI e XVII: a «Descripção» de Alexandre Massaii (1621), pref. de Carlos Bessa. Lisboa: Arquivo Histórico Militar
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SÃO JOSÉ, Fr. João de (imp. 1983) - Corografia do Reino do Algarve dividida em quatro livros (1577), apresentação, leitura, notas e glossário de Manuel Viegas Guerreiro e de Joaquim Romero Magalhães. Lisboa: Sá da Costa Editora
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SILVA, António Artur Baldaque da (1891) - Estado actual das pescas em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional